Toda semana eu tenho um ritual. Como todos os meus rituais (talvez como todos os rituais já realizados pela humanidade) esse também é banal: já que o Xorume é lançado no começo da semana (domingo, porra!) eu não ouço nenhum outro podcast enquanto eu não ouvir o que lançamos aquela semana… Simplesmente não consigo. O problema é que vez ou outra o nosso “podcast dominical” sai segunda… terça… ou quarta… São os famigerados domingos de 96 horas. Isso faz com que eu comece a semana já atrasado com o que eu “tenho” que escutar…
Foda-se! Eu sei que mesmo depois desse parto a minha semana começará bem com um cafezinho. Falo do CAFÉ COM PORRADA. O “Cafezinho da Galera” me faz rir muito. É um programa de áudio de 50 minutos, totalmente sincero. Lá você encontrará figuras divertidas e amáveis. Cristian, aquele seu tio mais velho que sempre tem uma história para contar de quando ele viveu no interior… Craw, aquele seu amigo galanteador que você sempre convida para almoçar na sua casa… Ingrid, aquela sua irmã mais nova que te surpreende já ter crescido e todo mundo tira um sarrinho… Evandrinho, aquele seu primo zuado… Grauby, aquele seu primo que zoa… E os anfitriões Ju e Orelha Miguel, que conduzem muito bem o espetáculo, sendo um casal que está há tanto tempo junto que aparenta ser uma pessoa só.
E esses dias, enquanto eu ouvia o CAFÉ COM PORRADA #69 – que contava basicamente sobre as cicatrizes que os participantes adquiriram ao longo da vida – eu pensava: o que eu poderia ter contado aqui? Lembrei então de uma cicatriz grande que tenho no braço esquerdo… Essa cicatriz tem um formato de “Y” e fica na parte do começo do antebraço (ali onde era para ter um músculo, mas só tem uma carne macia e gordurosa, muito boa para você comer caso estivéssemos em uma ilha deserta e eu viesse a óbito primeiro).
Era verão de 1977, se bem me lembro… A questão é que eu era adolescente e queria uma bicicleta… Bicicletas nunca foram bem quistas em casa, pois anos antes meu irmão tinha sido atropelado por uma Kombi branca e traumatismo craniano somado com U.T.I foi o suficiente para deixar meus pais sempre aflitos quando ouviam falar do “meio de transporte bi-pneumático sem motor”…
Mas eu era adolescente e queria uma bicicleta…
Meu amigo Milton tinha recém adquirido uma BARRA-FORTE, com pintura e peças originais… E o mais importante: freios originais (isso valorizava a bicicleta). A cor era um marrom feio – concordo – mas tinha o charme de ser original. Se você, por acaso, não está familiarizado com o que é uma barra-forte, pense naquelas bicicletas de carteiro… Se você ainda não sabe do que eu estou falando, a culpa não é sua do seu leve retardo e, portanto, estou deixando uma foto para exemplificar melhor:
Não parece grande coisa olhando de fora, né? Principalmente para você que cresceu com uma bicicleta de 20 marchas cujo banco não parecia um estuprador em potencial promovendo uma esmirilhada envolvendo suas nádegas e rego, né? Mas a verdade é que uma barra-forte é a melhor bicicleta do mundo! Por ser de puro ferro (teoria difundida por todos os moleques daquela época, e o que hoje não me parece real) ela era extremamente pesada, atributo que lhe fazia invencível em um racha de bikes na descida… Ter uma bike dessa era o equivalente a se ter um camaro, rapá!
Eu era um adolescente… Quera uma bicicleta antes, mas queria aquela barra-forte agora.
– Me vende essa bicicleta, Milton?
– Vixe, sua mãe vai ficar uma arara comigo… Ela não curte bicicleta!
– Que nada, ela não liga!
R$50,00 era o valor pedido. Logicamente eu não tinha. Pedi para minha mãe e ela disse “não”, obviamente… Insisti, argumentei que aquele era um valor simbólico… O investimento valia a pena… Que eu me locomoveria mais rápido pelo bairro… E sobre um contrato com 300 cláusulas de segurança consegui angariar fundos para o projeto #bicicletanoverão. Liguei para o Milton preparar a barrosa, pois eu estava indo buscar. Quando cheguei, tomei a danada em minhas mãos e quando fui pagar ele falou que não precisava… Era um presente!
Em casa, devolvi o dinheiro… E ouvindo “Born to be wild” saí para sentir o vento na cara e curtir a vida em alta velocidade… Andei 03 ruas para baixo… E lá tinha uma bela ladeira. Duzentos metros de comprimento e 45° de inclinação… E eu? Eu tinha uma barra-f0rte. A bicicleta mais pesada do mundo… Pedalei. Convicto de que se freasse eu era uma “bixinha da avenida” (termo muito honrado, diga-se de passagem)… Pedalei mais. Sabendo que ao fim da ladeira havia uma avenida, seria inteligente virar uma rua antes… Mais uma pedalada. E ao fazer a curva para a direita, aprendi na prática cruel da vida que ao virar devemos diminuir a velocidade, pois caso contrário “aparentemente” não conseguimos nos mover da maneira que queremos…
Resumindo, saí meio de “esgueio”… Pela bissetriz (favor consultar o google) do ângulo que eu queria fazer. Trombei em uma lixeira a ponto de arrancá-la… Meio zonzo ainda da pancada – e por me sentir “um bosta” humano – olhei para baixo e o guidão da bicicleta estava enfincado no meu braço… Sim, tinha penetrado em mim como a rola do “Tio Sérgio”: sem pedir licença e em um lugar indevido. Estava uns 03 centímetros para dentro da carne. Tirei o objeto fálico dali, subi na barrosa que estava com a roda da frente torta e fui embora sem prestar socorro à lixeira (com medo de ter que pagar aquela merda toda).
Tentei esconder o machucado, mas logicamente sangrava demais… Impossível… Minha mãe viu, ajudou no curativo… Deu um sermão sobre segurança no trânsito… E… Não proibiu a bicicleta… Ela sabia que para andar em uma barra-forte precisava ter dignidade… A minha tinha sido arrancada de mim exatamente como eu arranquei aquela lixeira… Eu andei de bicicleta outras vezes, mas nunca mais andei de barra-forte.
…
Uma ouvinte do Xoruminho, Aline S. mandou uma história de bicicleta esses dias no nosso e-mail. Espero ler em breve.
Ganso